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domingo, 16 de dezembro de 2018

Riobamba, 14, 15 e 16 de dezembro de 2018

Neve no Equador - cinco mil metros de altura, no Chimborazo

Saí hoje de Riobamba, capital da província de Chimborazo, na região da serra central do Equador. Foram quatro dias de trabalho e um belo sábado de passeio. Ontem, fazendo jus ao lugar que estou, fui ao Chimborazo, a montanha mais alta do mundo, se medida a partir do centro da terra. Ontem cheguei a 5.100 dos seus 6247 metros sobre o nível do mar. O que posso dizer, com licença ao trocadilho quase infame, é que é de tirar o fôlego.

Chimborazo visto da entrada do Parque.
Fui levado por um casal amigo que vive aqui, Vicente e Priscila. Excelentes guias. Já no caminho a paisagem é deslumbrante, pois saímos de Riobamba, a 2800 de altitude e chegamos, de carro, ao parque que abriga o Vulcão, a 4800 metros. No caminho, montanhas altas que são alcançadas, ultrapassadas e se fazem encostas de vales profundos, muitas delas cultivadas por favas, batatas, ervilhas, alfafas para os cuys, as preás tão apreciadas da culinária andina. Pastos e vacas também compõe a paisagem, o que é uma certa lástima, o ecossistema é muito frágil para abrigar animais deste porte. Falando em animais, destaques para as Vicunhas pastando nos montes, estas primas da lhamas, guanacos e alpacas, camelídeos que habitam o mais alto dos andes.
Visual da estrada 
Quando saímos do carro, a esta altura que me referi de 4.800 msnm, já sentimos a diferença da temperatura e, principalmente, o ar rarefeito. A subida até o segundo refúgio leva cerca de 45 minutos, para caminhar 800 metros. Isto mesmo. É íngreme, mas não tanto, um trecho que, se não fosse o ar carente de oxigênio, seria cumprido em cinco, seis minutos, que passariam desapercebidos. Mas, nesta altura... meus guias pacientemente faziam passo com meus passos, breves e lentos. E entremeados de sucessivas paradas para procurar o ar. No segundo refúgio paramos no pequeno bar que dá guarida aos que se atrevem e tomamos chocolate quente, uma receita com cacau, açúcar mascavo e água, trazida de casa pelo Vicente e pela Priscila. Bebida perfeita para dar energia mas não pesar o estômago. Balinhas de cana de açúcar também ajudam a manter a glicose e evitar dores de cabeça ou enjoos de estômago.
Lago a 5100 msnm. O gato aí sou eu.
Pois do segundo refúgio ainda havia mais cem metros a percorrer, em um caminho cercado de neve, até chegar a uma lagoa que muitas vezes se congela nesta época do ano, mas não tive esta sorte de vê-la congelada. Foram mais 15 minutos. Sim, quinze minutos para cem metros. Dali para frente se trata mesmo de esporte para profissionais, que se aventuram a chegar ao cume. No caminho, passamos por um cemitério, onde placas de mármore homenageiam a memória de muitos que deixaram a vida na tentativa de chegar ao topo. Como disse meu guia e amigo, os alpinistas experientes gostam de dizer que o topo mesmo é chegar são e salvo, de volta, em casa.
Eu havia visitado o Chimborazo, mas só até o primeiro refúgio. A experiência de ontem foi inesquecível. 
Reunião em Guamote
Na sexta, ainda dia de trabalho, fomos, na parte da manhã, participar de duas reuniões em Guamote, cidadezinha de dois mil habitantes, há uns 50 quilômetros de Riobamba, famosa por ser habitada quase que exclusivamente por indígenas e por sua feira que ocorre sempre nas quintas e que todos dizem valer muito a pena visitar. Esta perdi, mas pude ver a charmosa localidade, cortada por uma linha férrea, e ir a uma comunidade indígena, há 3600 metros de altura, onde nos esperavam com uma grande mobilização para fazerem suas reivindicações ao representante do Ministério da Agricultura do Estado de Chimborazo, meu amigo Roberto Goirtare, quem me convidou para estar aqui durante estes dias. Sexta de tarde tivemos mais um momento de capacitação em agroecologia para a equipe de oitenta técnicos do Ministério.
Casa tradicional, ao lado da casa nova. Guamote

O interesse que vi na agroecologia por aqui reforça minha percepção que vivemos um momento de crescimento exponencial desta forma de ver e fazer agricultura. Minha tese é que o principal impulso a este crescimento da agroecologia é a crescente vinculação que os consumidores tem feito entre alimentação e saúde.
E assim terminam meus dias em Riobamba e minhas viagens internacionais este ano. Foram sete, sendo apenas uma a um país que eu não conhecia. Tá de bom tamanho, ainda dou minha volta ao mundo.

Reunião em Guamote

Reunião em Guamote


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Riobamba, Equador, 11, 12 e 13 de dezembro de 2018.

Cerimônia Quechua, de louvor à Pachamama (mãe terra),
no início do evento.

Estou em Riobamba, capital da província de Chimborazo, na região da serra central do Equador. Vim para uma semana de trabalho, no marco da V Jornada de Agroecologia. Uma semana de palestras e cursos sobre este assunto que move minha vida há mais de trinta anos. Sempre um prazer.
Ruas e casas de Riobamba
Riobamba é uma cidade que merece o adjetivo de simpática. Um centro comercial muito agradável, onde podemos passar entre restaurantes, cafés, sorveterias, praças e pequenos comércios. Está a quase três mil metros de altura, o que já nos provoca alterações fisiológicas, como cansaço, algum mal estar e dor de cabeça. Compensados totalmente pela bela paisagem dos páramos andinos que circundam a cidade. E, como guardião da paisagem, e dos seres que a habitam, o Chimborazo, um vulcão inativo, que no alto dos seus mais de seis mil metros de altura domina, com absoluta elegância, o ambiente. Visitei-o uma vez e me prometeram um reencontro para sábado próximo, meu dia livre por aqui. Espero que se confirme. Prometo fotos.
Casa colonial
Cheguei na segunda dia 10, tarde da noite, e passei terça, quarta e quinta fechado em salas e auditórios. O pouco tempo que tive aproveitei para ver um pouco das suas praças, são muitas, e entre uma e outra caminhar por ruas com sua vistosa arquitetura colonial, que consiste em casas construídas pelos colonizadores espanhóis, que por sua vez remontam aos árabes, senhores de boa parte da atual Espanha por quase cinco séculos. Entrei em duas destas casas, uma abriga hoje um museu, outra um restaurante. Portas em arco, pé direito alto, dois andares, um lindo pátio interno normalmente florido e cercado por refrescante varanda. Afinal, faz calor lá pelos lados das arábias... No lado externo, varandas, no segundo andar, ornadas de vasos floridos.
 Mas, como eu dizia, nestes três dias trabalhei muito e conheci pouco. Aqui no Equador, como em todas partes, se nota um interesse crescente pela agroecologia, ou Agricultura Ecológica. Vou contar aqui três coisas que falei nas minhas palestras. Para os agricultores contei que Agricultura Ecológica é um ato de amor. 
Auditório principal da Universidade de
Chimborazo, local do evento terça e quarta.
Expliquei que muitas vezes não usamos esta palavra, mas tratar o solo com carinho e respeito, fornecendo a ele, e consequentemente às plantas, sua alimentação preferida, a matéria orgânica, é um ato de amor. Contei que muitos dos ditos cientistas têm chegado à conclusão que a vida no planeta se impôs através de atos amorosos, como a simbiose, onde dois seres vivos se juntam para se beneficiarem mutuamente, e não pela competição. Adoro falar isto, explico com calma, e curto muito a receptividade desta prosa com eles.
No segundo dia, mais para os técnicos, falei da fotossíntese como o elemento mais importante para uma boa prática na agricultura. Fotossíntese é um fenômeno, capitaneado, de produção de massa verde, flores e frutos a partir da energia do sol e de elementos inorgânicos da água e do ar. A vida no planeta só existe por causa deste milagre da natureza. Em tom de semi-piada, chamei a fotossíntese de milagre original, lhes disse que a fotossíntese pode ser vista como a mãe de todos os milagres!
Evento com estudantes, na faculdade de
agronomia
Para os estudantes, com quem trabalhei hoje, contei, entre outras coisas, sobre a compra, ano passado, da Whole Foods pela Amazon. Expliquei que a Amazon é uma das gigantes de informação do mundo. Que, assim como o Facebook e o Google,  sabe sobre nós o que nós mesmos não sabemos. E que a Whole Foods é a maior cadeia de supermercados de produtos orgânicos do mundo, com presença forte na América do Norte. Perguntei porque uma empresa que é uma gigante da informação, que sabe tudo sobre nossos gostos e interesses, faz sua maior inserção no mundo físico, 13,7 bilhão de dólares, para comprar uma cadeia de comidas orgânicas. Será que ela sabe que os millennials querem se alimentar de uma maneira diferente do que os seus pais?
Enfim, como não tenho muito do que falar de Riobamba, porque ainda a vi pouco, deixo por hoje apenas estas reflexões que compartilhei nestes dias de trabalho. Quem me acompanha sabe que curto muito fazer o que faço, estes dias aqui não tem sido diferente. Agora, em um momento relax, acabo de escrever este post em um bom café, o Café Express, na esquina da praça da estação. Sábado, se me inspiro, escrevo sobre minha ida ao interior da província e ao Chimborazo!

sábado, 8 de setembro de 2018

San Jose da Costa Rica, 03 a 07 de setembro de 2018


Teatro Nacional, centro de San Jose, Costa Rica
Passei esta semana na Costa Rica. Falando assim o que surge na cabeça de quem ouve é sol, praia, ondas. Pois não vi nada disto. Toda a semana entre reuniões e um Seminário intitulado Mercados para Produtos Ecológicos, na Universidade Nacional, campus de Heredia, uma cidade ao lado de San José, a capital do país.
Adorei esta estátua: La Chola, feita em bronze por Manuel
Vargas, pesa 500kg e tem mais de dois metros
Já estive por qui várias vezes e definitivamente não justifica visitá-lo pela sua capital ou pelas outras cidades que a rodeiam. Como normalmente mencionam as propagandas turísticas do país, vir aqui vale a pena, e muito, se for para conhecer suas praias e vulcões. Pois desta vez não rolou.
  De segunda até hoje, sexta-feira, o que fiz foi trabalhar e tomar café. Aliás, o café aqui é invariavelmente bom. Para quem gosta, um deleite à parte. E isto não apenas por condições ambientais favoráveis. Estas ajudam, mas existe um árduo trabalho para se alcançar a excelência, e aí que entra o esforço. Há anos o país tomou a decisão de se fazer conhecer pelos cafés especiais, o que pressupõe uma série de decisões de caráter político. Por exemplo, aqui é proibido plantar café robusta. Vou explicar. O Brasil é o maior produtor de café arábica do mundo. Arábica é o café de melhor qualidade, com mais sabor e aroma. Por suas características,exige certa altitude para produzir plenamente, sendo de 1200 a 1500 metros a ideal. Por isto no Brasil produzimos bom café em regiões serranas, em Minas Gerais, São Paulo ou no Espírito Santo. Para alguns pode ser uma surpresa, mas em serras de alguns estados do Nordeste, como o Ceará, também se produz café de qualidade. O Robusta é outra planta, uma outra espécie, que também é considerada um café. Normal, existem outro exemplos onde diferentes espécies, com seus respectivosnomes científicos recebem o mesma nome comum. Aroz ou feijão, para citar dois exemplos muito comuns, também são denominações para diferentes espécies, como o arroz agulha ou arroz cateto. 
Arábica, maduro.
Bem, o café Robusta é uma planta muito maior, muito mais produtiva e adaptada a regiões mais quentes. Não necessitam desta altitude que mencionei para produzir bem. No Brasil, além do arábica, produzimos grande quantidade de café robusta. Somos os segundo maior produtor do mundo, perdemos apenas para o Vietnã. Assim, a maioria dos cafés que achamos em um mercado no Brasil são uma mistura de arábica, por vezes de baixa qualidade, com robusta. Por isto podemos comprar um café por vinte reais o quilo, às vezes menos. É a alta produtividade do Robusta que permite praticar este preço. Um café 100% arábica, mesmo não tão selecionado, sempre custará mais. Pois bem, voltando ao início deste parágrafo, a Costa Rica proíbe o plantio de Robusta. Para não correr o risco de baixar a qualidade e manter um bom posicionamento no mercado para o seu café. Esta prática não é incomum em dadas situações. O Chile, por exemplo, proíbe o plantio de variedades de uvas que não sejam bem qualificadas para a produção de vinho. 
Visual desde o Café do Teatro Nacional. 
Já que comecei, vou falar mais um pouco do café. Sabe quanto este grãozinho que, conta a história, teve seu uso descoberto na Etiópia, por uma pastor que notou que suas cabras ficavam saltitantes após se alimentar dos frutinhos vermelhos de um arbusto, movimenta por ano em termos econômicos? Duzentos bilhões de dólares. Sim, não exagerei, é isto mesmo. Sacou porque a Nestlé é doida em café? Porque ela elegeu água e café suas prioridades? Cerca de 15% deste mercado mundial de café está nas mãos da Nestlé. E ela quer mais. Recentemente fechou um acordo com a Starbucks, a gigate das cafeterias. Irá distribuir os cafés Starbucks em supermercados. Valor da transação: 7,2 bilhões de dólares. As grandes empresas, Nestlé não é a única, apostam que bebidas à base de café substituirão os refrigerantes, que por motivos óbvios tem seus dias contados. A Coca-Cola ainda não te contou isso? Pois ela sabe, já comprou algumas marcas importantes de café nos EUA.
Café sombreado na Costa Rica. Esta foto tirei em 2010.
Já que meu mundo é da Agricultura Orgânica, vou acrescentar que cerca de dez por cento do café produzido no mundo é certificado como orgânico. Mas existem vários selos que se enquadram nos chamados VSS, sigla em inglês para Normas Voluntárias de Sustentabilidade. No total, mais da metade do café do mundo está certificado por alguma destas normas. O setor do café pretende ser a primeira cadeia de produção a ser toda ela considerada sustentável. Enfim, o café é um mundo à parte, entendê-lo é para profissionais. Tenho amigos que passam a madrugada vendendo ou comprando café, beneficiando-se de determinados horários em função das aberturas das bolsas de mercadorias ao redor do mundo.
Mercado de frutas e verduras no centro de San José
Bom, deixando de falar do café, cou obrigado a registrar aqui neste post que Helena, minha filha que vive no México, veio me visitar. Não sei se ela opina igual, mas estarmos juntos é muito melhor do que ver praia ou vulcão. Ela chegou hoje e fui obrigado a matar o trabalho, na parte da tarde, para passearmos pelo centro de São José. Não é particularmente bonito, mas, como sabemos, o que importa é a companhia. Nos divertimos. Comemos comida catalã e tomamos um bom café, ops, apareceu de novo, na Cafeteria do Teatro Nacional. Belo lugar.
Amanhã saio ao campo antes das seis da manhã. Não sei porque, mas tenho a intuição que minha filha não vai comigo...


quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Maputo, Moçambique, 20 a 22 de agosto de 2018

Visitando as machambas, em Maputo
Cheguei em Maputo, capital de Moçambique, ainda no domingo. Estou aqui a convite de Abiodes, ONG local que dede 1996 trabalha com Agricultura Orgânica. É a terceira vez que estou aqui, sempre acompanhando este trabalho que vem sendo denominado de Cadeia das Hortícolas Sustentáveis de Maputo.
Já foram três dias de trabalho. Segunda-feira, reunião para me inteirar das atividades que vêm sendo desenvolvidas, ontem, ida a campo, a melhor parte, e hoje, quarta-feira, uma formação, onde reunimos cerca de 60 pessoas, entre agricultoras, agricultores, técnicos e técnicas de ONGs e governo.
Cinturão verde de Maputo e suas machambas
Estar na África que fala português é uma experiência à parte. Tudo tão longe e tão perto. Moçambique está na costa do índico e é surpreendente ver as similitudes culturais conosco. Surpreende, mas não deveria, basta dar uma olhada na formação da nossa nação e ver a influência negra e portuguesa. Nada mais óbvio que nos ver por aqui, no cafezinho, na padaria com ar Lisboeta, no bolinho de bacalhau, na forma expansiva de se expressar ou no sorriso fácil em meio a dificuldades.
Moçambique é um país economicamente pobre, o que nos exige atenção no desenvolvimento da agricultura orgânica. O modelito europeu, reproduzido na maior parte do mundo, é de uma produção orgânica que deve ter reconhecido seu valor por um preço diferenciado. Se por um lado é justificado este anseio por parte dos agricultores em países como Moçambique, que são obrigados a sobreviver  com preços agrícolas bastante aviltados, por outro não se pode limitar a oferta dos produtos sem veneno a quem pode pagar mais por sua comida. Ter bom conhecimento técnico-agronômico, para fazer que a produção orgânica seja mais barata e menos penosa é um ponto crucial no intento de resolver esta equação. E foi este aspecto que mais trabalhei na minha ida a campo ontem e na capacitação hoje.
No campo, de prosa...
O trabalho aqui é no cinturão verde de Maputo, uma impressionante área agrícola muito perto da cidade. Áreas de hortas pequenas, cerca de 400 a 2000 metros quadrados, o que também impõe procedimentos que muitas vezes não guardam relação com princípios da agricultura orgânica, como produzir seu próprio adubo a partir de dejetos animais. Ou deixar parte da área em pousio ou adubação verde, ficando alguns meses sem cultivo comercial em determinado espaço. Aqui não rola, a pressão por produzir de forma intensa é vigorosa. Enfim, realidades distintas, o que faz meu tutano, que não é muito, e minha experiência na área, um pouco maior, serem submetidas a alta pressão.
As mulheres de Maputo!
De resto, aproveitando o tempo livre para comprar capulanas e comer frutos do mar. Capulanas são os panos utilizados por todas as mulheres daqui, independente da classe social. Uma espécie de acessório obrigatório, é utilizada amarrada na cintura, sobre os ombros, para carregar bebês e inúmeros outros usos, que ultrapassam os limites do corpo e servem de toalhas de mesa, cortinas, mantas e por aí vai. Hoje de manhã, ouvindo um anúncio de utilidade pública na rádio, a locutora recomendava-a para as mães manterem seus bebes aquecidos em dada situação risco. Dizia ela: mãe, não deixe de aquecer seu filho com uma manta ou uma capulana. 
Atividade de formação
Na lida...
Ontem em uma conversa informal me diziam, o que já ouvi de outras vezes, que não é possível desvincular a imagem da mulher moçambicana de uma capulana. Desde pequenas são ensinadas a sempre terem uma na bolsa, para o caso de alguma emergência. Aliás, sigo achando as mulheres agricultoras a melhor parte de Maputo, como já havia percebido nas outras estadas aqui. Tanto a campo quanto em sala, são as mais animadas, com mais clareza sobre a proposta de agricultura orgânica, que não se limitam ao discurso, cantam enquanto trabalham e soltam um farto sorriso sem sequer pensar em pedir licença. 
Amanhã, reunião com a Comissão de Ética, formada por agricultores e consumidores de produtos orgânicos, uma instância que é gestora da Certificação Participativa que funciona, ainda de maneira tímida, por aqui. Mais um dia de trabalho e prazer misturados e em sintonia. Para usar a palavra que uma das minhas turmas mais gosta, gratidão!


domingo, 27 de maio de 2018

São Tomé e Príncipe, 25 e 26 de maio de 2018


Hospital da Roça Água Izé
Ontem e hoje, meus últimos em São Tomé e Príncipe, passeei muito e trabalhei pouco, ainda que eu tenha constantemente dificuldades em separar um de outro.
Cascata São Nicolau
A ilha é pequena e em um dia é possível recorrer todo o país. Não cheguei a tanto, mas vi muita coisa. Uma delas a Cachoeira de São Nicolau. Bonita, um bom banho, com a força da cachoeira e a água fria lavando a alma e despertando o corpo, mas o que chama mesmo a atenção é a natureza exuberante ao seu redor.
Conheci algumas praias lindas. Talvez a mais bonita a das Sete Ondas, absolutamente deserta, entre duas montanhas verdejantes. Perto dali vi a Boca do Diabo, uma pequena falésia junto ao mar, onde, do alto, mas não distante, vemos as ondas correndo sob uma rocha e eclodindo em determinado ponto onde encontra saída em meio a esta mesma rocha. Belo espetáculo de força da natureza. A praia da lagoa azul também é linda, assim como a privativa do Club Santana, um resort que fica a poucos quilômetros da capital São Tomé, onde por uma taxa é possível desfrutar dos seus aprazíveis e caros serviços. As estradas ladeando o mar também são um espetáculo. Pena que suas condições de conservação e o fato de serem estreitas e sem acostamento exigem atenção redobrada ao dirigir, impedindo o motorista de saborear um pouco mais a bela paisagem.
Boca do Inferno
Mas, em que pese a beleza natural das praias e cachoeiras, não foi isto que eu mais gostei de conhecer aqui em São Tomé. Praias ou cachoeiras bonitas eu já havia visto. O que vi aqui, e só aqui, foram as Roças. 
As Roças são as antigas fazendas de cacau, algumas poucas de café, que tantas riquezas, a seu tempo, geraram para seus proprietários. Com uma estrutura admirável. São algumas dezenas na ilha de São Tomé, algumas poucas na ilha de Príncipe. Originalmente os seus donos eram portugueses e moravam em Lisboa. Alguns deles vinham ver sua propriedade uma vez a cada dois ou três anos. Outros nem isto. A roça era tocada por um administrador de confiança. O trabalho era todo realizado pelos negros que eram trazidos para cá, vindos principalmente de Angola. Inicialmente como escravos, posteriormente como escravos disfarçados de assalariados.
Roça Água Izé
Depois do decreto que acabou com a escravidão nos território portugueses, em 1875, os negros vinham como trabalhadores livres, inclusive com contrato assinado que lhes dariam salário e outros benefícios como escola para os filhos ou cuidados médicos. Papo furado... Uma das Roças que visitei foi a Monte Café. Eles mantém um Museu do Café, onde pude ver estes contratos, alguns assinados com impressão digital, o que demonstra que eles não tinham ideia do que estavam assinando. Pude ver também o livro caixa, onde eram lançados seus salários e as dívidas que contraiam com os serviços que lhes eram prestados, como casa e comida. A comida era de péssima qualidade, muitas vezes farinha e água. Mantinham-se saudáveis e dispostos ao trabalho pela riqueza de frutos que cresciam e crescem na ilha. Uma delas a fruta-pão. 
Fruta - pão
Olha que nome mais lindo: Fruta-pão. A oferta de peixe também é praticamente ilimitada, mas não sei se os negros tinham acesso ou tempo para pescar. As ditas casas eram as senzalas, onde viviam em condições muito para cá de precárias. Vi também fotos da primeira 
e da última hora diária de trabalho, com os escravos todos enfileirados, para serem contados e o feitor ter certeza que nenhum fugiu. Fugir para onde? Estamos em uma ilha de dimensões bem reduzidas. Muitos fugiam para se embrenharem na Floresta Ôbo, tão fechada que os brancos ali não entravam. Reza a lenda que também os negros não saiam de lá. Ou seja, fugir era um ato de absoluto desespero, em direção à solidão de uma floresta tropical úmida e à morte.
Visual da Roça Água Izé. Cheia de gente,
 mas tento tirar foto quando não estão,.
.
A chance de ver uma Roça aqui é voltar no tempo, porque a paisagem nos remete diretamente aos séculos 18, 19, início do 20. Ainda vemos as casas, as senzalas, escolas e hospitais, que hoje servem de moradias. As Roças ainda estão vivas, habitadas, cheirando a passado, impedindo-o de se calar e trazendo-o para o presente. Algumas delas em ruínas, ainda assim habitadas, outras transformadas, ao menos uma parte, em lindos hotéis. 
A Roça Monte Café hoje está com metade de sua área a procura de um investidor e a outra metade, 250 hectares, dividida pelo governo entre os trabalhadores, que se organizaram em torno de uma cooperativa de Café Biológico (orgânico). Comprei uns pacotes... delicioso! Ali pude ver a senzala, habitada, muita gente, todas as idades. As condições ruins não lhes impede o gesto gentil com os que os visitam. As crianças pedem doce insistentemente. Ainda bem que eu não tinha.
Museu do Café, Roça Monte Café
Outra Roça muito  interessante que visitei é a Água Izé. Não sei o que é feito de suas lavouras de cacau. Mas a estrutura, casas, senzala, hospitais e escola, está em ruínas, mas nem por isto pouco habitada. Fiquei de fato impressionado e não sou capaz de descrever o que vi. Realmente não sei se vi pobreza, miséria ou apenas condições diferentes de vida. De todos modos o que considero o conforto mínimo para satisfazer nossas necessidades não estão ali presentes.
E a terceira roça que vi e entrei é a Santo Antônio. Esta foi em parte transformada em hotel, mas ao lado está a senzala e a população local vivendo nas mesmas condições que não descrevi acima, por total falta de capacidade de colocar no papel o observado e sentido.
Na Roça Santo Antônio vi um dos quartos do hotel, localizado na antiga casa do administrador. Estava impecável. Simples e acolhedor. Escolhi que fico ali quando voltar. Quando volto? Acho que nem Deus sabe!

Mulheres lavando roupas

quinta-feira, 24 de maio de 2018

São Tomé e Príncipe, 22, 23 e 24 de maio de 2018


São Tomé, São Tomé  e Príncipe
De terça até hoje, quinta-feira, minha principal atividade foi dando o curso que fui convidado a ministrar neste pequeno país Africano. São Tomé e Príncipe tem apenas 1000 km² e 200 mil habitantes. A ilha de São Tomé, a única que irei conhecer, é bem maior, em área e habitantes, que a ilha de Príncipe. Possui, em termos percentuais, uma superfície significativa de produção orgânica certificada, principalmente cacau, café e pimenta.
Visita a um horticultor, arredores de São Tomé
 A formação foi sobre Sistemas Participativos de Garantia para produtos Biológicos, o adjetivo, em função da influência portuguesa, mais usado na ilha para os produtos que são produzidos sem agrotóxicos, fertilizantes químicos ou sementes transgênicas, também conhecidos como orgânicos ou ecológicos em outros lugares.
Não é fácil pensar em mercados orgânicos em contextos como o de São Tomé e Príncipe. Na verdade acho até que pode ser inconveniente. Cerca de 60 % da população é de baixíssimo poder aquisitivo. 
Visita no campo, mudas de tomate.
O fato de ser uma ilha com poucos recursos, não exime a sociedade do constante apelo por consumo tão característico do mundo contemporâneo. Como diz Galeano, o sistema te convida à uma festa, mas nem sempre te deixa entrar. Podemos acrescentar que o ingresso é caro. 
Com desejo de participar da festa do consumo, mesmo que muito timidamente, em um contexto de recursos escassos, nem sempre sobra dinheiro para se privilegiar o gasto com comida para além da sobrevivência. É verdade que esta falta de priorização do alimento de qualidade se dá também em situações de alta renda, mas, na escassez, é natural que a preocupação com o acesso anteceda a preocupação com a qualidade. 
Mercado municipal de São Tomé
Um olhar, atento, quem sabe mesmo distraído, no mercado municipal de São Tomé e nos seus arredores nos obriga a fazer esta reflexão, ainda mais sendo o meu trabalho aqui falar da agricultura ecológica e de suas vantagens, associadas a criação de um mercado diferenciado. Estou na qualidade de consultor convidado, a música não foi escolhida por mim. Se fosse, colocaria para tocar a agricultura ecológica neste contexto em função de seus méritos agronômicos, por produzir bem preservando os recursos naturais e econômicos, por prescindir de caros e importados insumos químicos. Mercado diferenciado e uma possível certificação para seu acesso até poderia ser colocado na vitrola, mas só do meio do baile para adiante...
Mas, música posta, busquei entrar no ritmo. Terminamos hoje com um desenho de como poderia funcionar um Sistema Participativo de Garanta em São Tomé e Príncipe e quais os passos necessários para que este desenho chegue à realidade. Tarefa cumprida.
Mudando de assunto, tenho me deliciado com a culinária aqui na ilha. Comi peixe absolutamente todos os dias. Peixes frescos e bem temperados, quase sempre feitos na brasa. De acompanhamento inhame, fruta pão, banana e batata doce, servidas assadas ou fritas. Comi também calulu de peixe seco, à base de peixe servido em um molho consistente e feito com ervas, tomate, alho, quiabo, abobrinha e óleo de palma. Acompanhamento à gosto, mas com arroz caiu muito bem. Feijoada de peixe foi outra novidade para mim, me surpreendi com a combinação que estava bem saborosa, no café/restaurante que mais fui, o Camões. Nele comi também Bacalhau à Brás e tomei bons cafés.
Amendoeira em São Tomé.
Assim passei estes três dias. Entre o trabalho, peixes e calor. Quando o sol dá as caras apresenta uma força, como não poderia deixar de ser, equatorial. Aliado à umidade do ar, faz com que uma simples caminhada nos ponha a suar por todos os poros.
A cidade não é bonita, apesar de ser em parte rodeada pelo mar, da exuberância da sua vegetação, mesmo a urbana, e de guardar algumas casas dos tempos coloniais bastante charmosas. 
Até o momento conheci apenas a cidade de São Tomé, com duas idas ao campo em propriedades rurais muito próximas à cidade. Amanhã e sábado, com menos compromissos, espero conhecer algo além, aproveitando que a ilha é pequena e indo ao seu interior ver sua decantada beleza tropical. 


Casario no centro de São Tomé



segunda-feira, 21 de maio de 2018

São Tomé e Príncipe, 19, 20 e 21 de maio de 2018

Casarão envelhecido em /são Tomé, resquício
da época coloni
al

Cheguei na cidade de São Tomé, capital de São Tomé e Príncipe, no sábado à noite. Fico aqui neste pequeno país Africano, situado no Golfo da Guiné, a leste do Gabão e da Guiné Equatorial, os dois países continentais mais próximos, até sábado. Vim para uma capacitação em Sistemas Participativos de Garantia, à convite de IFOAM, a Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica. 
A horta aqui é uma certa amputação
da natureza...
Nestas 48 horas que me encontro nesta ilha vulcânica, dois momentos dignos de nota. Um deles é a ida à zona rural, ontem, domingo, pela manhã. Nos arredores da cidade visitamos três campos contíguos de hortaliças. Vi canteiros de cenoura e alface, tomates e pimentões tanto a campo quanto em estufas. Vi ainda pimenta malagueta, milho, quiabo, inhame e alguns outros pequenos cultivos. Mas não é isto que chamou minha atenção, mas sim a intensidade da natureza. O solo da ilha é presumivelmente rico em minerais, exatamente fruto da sua origem vulcânica e da sua jovialidade em termos geológicos. A presença de minerais, aliada a intensidade de sol e chuva de um trópico úmido, faz o verde vir por todos lados com um vigor que quase assusta.
Meu momento fotógrafo!
Não precisei adentrar em nenhuma mata para imaginar o que passaram os colonizadores desta ilha na tentativa de domá-la, se é que o termo é cabível. A palavra colonização aqui cabe com precisão, porque os navegadores portugueses que chegaram, em 1470, exatamente no dia de São Tomé, encontraram uma ilha desabitada. Alguns anos depois começaram a vir portugueses buscando nela sobreviver como funcionários de fidalgos que haviam sido contemplados com terras em um sistema de capitanias hereditárias, tão conhecido dos brasileiros. Após um período de tentativa frustrada de colonização branca, constantemente vitimados por doenças tropicais, a aposta foi trazer negros capturados de outros lados, principalmente no que posteriormente se denominou Angola e iniciar o cultivo de cana de açúcar, no que foram muito bem sucedidos por algum tempo, antes de ver seu declínio. O ciclo da cana do Brasil foi uma das razões por este cultivo ter entrado em decadência em São Tomé, tendo sido substituído pelo café e pelo cacau, que se destacam até os dias de hoje. São Tomé e Príncipe também sempre foram ponto de apoio na rota comercial para Índiae no tráfico de escravos para o Brasil. 
Visual do Atlântico, São Tomé.
Pois voltando ao que vi no campo, o verde é de uma avidez por se instalar que, contrariando a canção, mesmo em pedras recentemente mudadas de lugar vi limo crescendo. Existe um dilema agroecológico em contextos como o que estou vendo aqui, não pela primeira vez na minha vida. Cultivar tomates ou alfaces em um ambiente como este é quase uma heresia ambiental. Mas situações bem cotidianas, como hábitos de consumo importados ou a presença de turistas na ilha são parte da razão da demanda e, por consequência, do cultivo destas espécies. Ocorre que quanto maior a distância entre o ecossistema original de uma planta e o ecossistema onde se pretende cultivá-la mais difícil é a sua adaptação. Menos adaptada, uma planta pode se mostrar mais sensível a determinadas enfermidades ou ataques de alguns insetos, as ditas pragas. Pronto, o agrotóxico se sente convidado... a distância que me referi não é geográfica, mas sim na arquitetura dos ecossistemas, que é fruto da intensidade da luz ou da chuva e da presença de nutrientes nos solos. 
Tomate... que saudade dos Andes...
Vou dar o exemplo do próprio tomate. Ele é originário dos Andes, que é um ambiente frio e seco. Aqui é quente e úmido. Adaptação difícil, e mais difícil ainda não artificializar o ambiente para viabilizar sua produção. Estufas ou venenos, que vi ontem no campo, são parte desta artificialização. 
Parece que já comecei o curso de amanhã, o agrônomo começou a fazer discurso... vou então mudar de assunto e falar da segunda coisa que considero digno de nota dentre as que vi nestes dois dias: a fábrica de chocolates do Cláudio Corallo (www.claudiocorallo.com). Impressionante a qualidade do chocolate que este Italiano, radicado no país há mais de 40 anos, faz. Com cacau cultivado por ele mesmo, na Ilha de Príncipe, onde é despolpado e seco. Posteriormente vem para São Tomé, onde é transformado em chocolate. Segundo a explicação que nos foi dada, ele emprega a lógica que aprendeu trabalhando com azeite de oliva na Itália. 
A pequena fábrica de chocolate - explicação
 aos visitantes
Quanto menos processado a oliva, a partir de um fruto de qualidade, mais o azeite irá manter as qualidades de sabor e aroma originais do fruto. Assim, seu cacau é processado o mínimo possível, e seu chocolate tem real sabor a cacau. Com extremos cuidados no plantio, cultivo, despolpa e secagem do cacau este real sabor é realmente muito agradável. O exemplo didático que nos foi dado foi da sangria. Não é tão importante um vinho de qualidade para fazê-la, já que tanta coisa será agregado que não irá fazer tanta diferença o sabor original do vinho. Colocando na fabricação de um chocolate leite, lecitina de soja, açúcar, baunilha e muitas coisas mais, o quanto importa a qualidade do cacau? Pouco... Hoje provei, por exemplo, um chocolate com 80% cacau e 20% de açúcar. Mais o que? Nada, absolutamente nada. Mais uma prova de que o sofisticado mora no coração da simplicidade.
Enfim, fiquei impressionado. Muito. Não sei se já comi chocolate melhor na vida. E com tantas provinhas saí da fábrica ligadíssimo. Afinal o cacau é estimulante. Estou aqui, passado da meia-noite e sem nenhum sono.
Mas vou tentar dormir, amanhã tem uma turma grande esperando pela formação que me trouxe aqui, é bom não decepcioná-los muito. E nem falei da culinária, já comi uns pratos à base de peixes deliciosos por nesta ilha. E nem falei dos mercados... olha aí ao lado... é, acho que não foram apenas duas coisas interessantes entre ontem e hoje em São Tomé.